quinta-feira, 5 de setembro de 2019

HERMETO PASCOAL AO VIVO EM MONTREUX




"Remelexo cá/ remelexo lá/ re-me-le-xo em qualqué lugá!" Em bom alagoano, o Bruxo de Arapiraca lançou o seu grito de guerra na noite suíça. Este é o registro daquela data histórica - 20 de julho de 1979 - no 13o. Festival de Jazz de Montreux. Foram dois espetáculos, mais de cinco horas de música e o próprio Hermeto se trancou num estúdio durante quinze dias para selecionar o material deste álbum.

Hermeto, Montreux. Que pode haver de comum entre um nordestino nascido na Lagoa da Canoa (a 22 de junho de 1936) e a Pérola da Riviera do Lago Léman? Resposta: o jazz. Mas nem mesmo esse rótulo é suficiente para definir o som telúrico de Hermeto. Músico dos músicos, entidade mágica desde os tempos em que tocou com Miles Davis nos Estados Unidos, ele também é objeto de estudo dos críticos mais especializados. Francis Marmande, por exemplo, do Jazz Magazine, o ouviu em Montreux e fala de "um Brasil com fronteiras musicais muito livres". Michel Zwerin, dias antes de sua apresentação na Noite Brasileira, publicou um artigo no International Herald Tribune afirmando que, no LP Zabumbê-bum-á, Hermeto "cria sua própria forma do mesmo modo como o álbum dos Beatles, Sargent Pepper's criou uma forma". E assim descreveu uma das faixas: "Um soprano conduz um grupo de saxofones estreitamente entrosados. As figuras polirrítmicas e politonais são uma espécie de Berg incrementado com jazz. Surge a selva. Passagens melódicas implicam Stevie Wonder. Campainhas, buzinas, apitos, uivos e estalidos saem direto da filosofia de John Cage. Algumas texturas devem fazer Frank Zappa se olhar no espelho. Podemos reconhecer Sun Ra e Kurt Weill, e uma breve sequência é tirada de Giant Steps de Coltrane, como que para dizer: 'Vejam - nós também somos capazes de fazer isso' ".

Hermeto dispensa tantas explicações. Ele é ao mesmo tempo muito mais simples... e muito mais complexo. Era preciso vê-lo, embarcando no Galeão, com sua parafernália de percussão - agogôs, caxixis, triângulos, apitos, cabaças - e umas panelas e tralhas que seria mais fácil comprar em qualquer loja de ferragens local do que transportar de um hemisfério para o outro. E tem ainda o já lendário episódio da alfândega suíça: como convencer o aduaneiro de que aquela bacia toda amassada era rigorosamente um instrumento musical?

Folclore à parte, Hermeto é um profissional seríssimo, destes que se contam nos dedos da mão. Não hesito em comparar seu trabalho ao de Charlie Mingus. Mais do que um talentoso indivíduo musical, ele é um compositor , um mestre, sabe formar outros músicos, outros compositores, conduzir seus esforços à meta procurada, aglutinar suas personalidades numa massa sonora em que a criação coletiva acaba contando mais do que tudo. Hermeto funciona no que os americanos costumam chamar de uma Workshop, e o termo é duplamente apropriado pelo que sugere daquele trabalho tanto dos artesões medievais, como da típica paciência nordestina.

Philippe Lesage, de Jazz Hot, esteve em Montreux e soube captar isso: "Hermeto abre para cada um de seus músicos espaços livres nos quais eles podem revelar sua personalidade profunda, sem deixarem de se inscrever na coesão do grupo por meio de uma cumplicidade nascida de um longo trabalho comum".

Os músicos que acompanharam Hermeto a Montreux são basicamente os de seu grupo atual, aquele que gravou Zabumbê-bum-á: Cacau (sax tenor, sax barítono, clarineta, flauta), Jovino (teclados), Zabelê (vocais e percussão), Itiberê (baixo elétrico), Pernambuco (vocais e percussão) e Nenê (bateria). O grupo foi acrescido de Nivaldo Ornellas (sax tenor, sax soprano, flauta) que deu outra prova da capacidade organizadora de Hermeto, integrando-se em pouco tempo à sua linguagem.

Quanto ao próprio Hermeto, nunca se atirou com tanta garra e avidez ao ato de criação. Ao contrário de seus outros álbuns, produzidos na atmosfera rarefeita do estúdio, este duplo, gravado ao vivo, lhe deu horizontes abertos para expandir ao máximo todas as facetas do seu talento. E não são poucas. Além de assinar todas as composições, ele se desdobra de um instrumento para outro, salta dos teclados para os sopros (sax tenor, soprano, flauta), explora com impressionante agilidade um instrumento pouco valorizado - a escaleta e entrega-se a vocais incríveis, alguns fundindo a melhor tradição nordestina com o scat jazzístico, como no refrão "A-E-I-O-U-psilonizê". E, de repente, tira até efeito de um simples apito, que cospe sobre o palco depois de um solo elaborado para retomar imediatamente o improviso de escaleta. Ou então estabelece um insólito dueto entre sua própria voz e a escaleta, conseguindo em certas passagens como fazia Rahsaan Roland Kirk - superpor a voz e os sons emitidos pelo instrumento.

Há neste "Ao Vivo em Montreux" uma riqueza de detalhes que só uma audição mais demorada deixará perceber. Não é um álbum de consumo instantâneo, mas algo que o gourmet sonoro degustará aos poucos - e por muito tempo. Outro aspecto notável é a maneira como Hermeto se comunica com a platéia. No final do primeiro concerto, instado a voltar pelas palmas ritmadas do público, ele pede que elas prossigam naquela mesma cadência (tudo isso em português) e faz um incrível solo de sax acompanhado pelos aplausos. Antes de executar na flauta a bela modinha que compôs no quarto do hotel inspirado pela paisagem que via da janela, Montreux, Hermeto avisa àquela massa multinacional de quatro mil jovens: "Olhaquí, pessoal, é uma música lenta. Se fizerem barulho eu paro, hein?".

Os títulos das faixas como Pintando o Sete e Quebrando Tudo dão uma boa ideia das intenções musicais de Hermeto em Montreux. E também uma ideia do pique atingido por sua carreira em 1979. Além de dois álbuns tão diferentes e ao mesmo tempo tão importantes (Zabumbê e Ao Vivo), duas apresentações em festivais internacionais de jazz (Montreux e Tóquio), duas temporadas nacionais consagradas (Rio e São Paulo), a preparação da trilha sonora de uma novela (O Cangaceiro), e uma turnê em dezembro que dará o que falar: Hermeto Pascoal e Dizzy Gillespie. Atravessando a América Latina, de Caracas a Buenos Aires, pelas principais cidades brasileiras, dois gigantes da música instrumental de hoje - o jazzman das origens negras norte-americanas e o jazzman dos anos 80, que soube arrancar de suas raízes nordestinas um som novo que o mundo inteiro ouve com vibração.



Roberto Muggiati
(autor do livro Rock/ O Grito e o Mito, colunista de jazz de Manchete e Ele Ela)

Texto copiado, na íntegra, do press-release incluído em cópia promocional do LP Hermeto Pascoal Ao Vivo, lançado em 1979 pela WEA. Eventuais erros são devido à reprodução fiel do texto contido no release.