domingo, 12 de outubro de 2014

Trilhas de novelas



Antes de ficar ofendido quando (e se) alguém te chamar de "noveleiro", vire o jogo e diga que, sim, as novelas têm seu valor: as trilhas sonoras fantásticas das décadas de 60 e 70. - por Ronaldo Evangelista

Hoje em dia é tudo tao chato e burocrático que é até difícil imaginar uma época em que as trilhas de novelas da Globo eram algo legal. Mas houve um período em que tudo era boas ideias e resultados divertidos. As novelas no Brasil surgiram quase junto com as redes de televisão, no começo dos anos 50, mas assumiram o formato que conhecemos hoje - diárias, produzidas em videotape - nos anos 60. Ao mesmo tempo, naturalmente, foram se testando fórmulas e desenvolvendo suas trilhas. A partir de 1965 algumas saíam até em disco, geralmente um compacto com sua música-tema. Um dia, alguém juntou 2 mais 2 e viu o potencial daquilo - e o resultado é um monstro da indústria fonográfica brasileira que resiste até hoje. Mas, onde atualmente há o jogo de marketing que funciona na equação-Tostines - entra na trilha quem faz sucesso, faz sucesso quem entra na trilha - ,antes havia a simples despretensão de fazer, e o sucesso seria simplesmente consequência. E' uma história de grandes artistas, grandes compilações e grandes valores, contada através de grandes discos.

DISCOGRAFIA

***** Véu De Noiva (Philips, 1969)
****   Verão Vermelho (Philips, 1970)
****   Pigmaliao 70 (Philips, 1970)
****   Irmãos Coragem (Philips, 1970)

Antes, as emissoras pegavam músicas do momento, geralmente instrumentais, para funcionar como trilha em suas novelas. Em algumas tramas, personagens ganhavam uma música-tema com vocal e letra, mas era o reaproveitamento de algum hit. Tudo mudou quando o homem de gravadora André Midani, então na Philips, teve a ideia: por que não colocar seus artistas para para compor e cantar especialmente para as novelas? Seria propaganda gratuíta para eles na TV, a Philips ganharia vendendo os discos e seria só dar uma porcentagem das vendas para a Rede Globo. A primeira experiência aconteceu em 1969 com Véu De Noiva. O então jovem produtor da Philips Nelson Motta foi o arregimentador. Resultado: as até hoje clássicas "Teletema" (de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar, inspirada na canção-tema do filme Um Homem e Uma Mulher) e "Azymuth" (de Marcos Valle, que deu origem à banda homônima), além da inédita "Irene", de Caetano.  Foi um sucesso, e na sequência vieram Verão Vermelho (com Elis Regina, Roberto Menescal, Luiz Eça), Pigmaliao 70 (Erlon Chaves, Wilson das Neves) e Irmãos Coragem (Tim Maia, Jair Rodrigues, Joyce), entre outras, sempre com faixas inéditas - feitas para a trilha ou ainda não lançada oficialmente pelos artistas.

***** O Cafona (Som Livre, 1971)
****   Minha Doce Namorada (Som Livre, 1971)
****   O Homem  Que Deve Morrer (Som Livre, 1971)
****   Bandeira 2 (Som Livre, 1971)

"Vocês já repararam quanto dinheiro a Philips ganha com as trilhas de nossas novelas?", deve ter perguntado alguém na Globo. E com razão: o fenômeno das trilhas sonoras nascia com força total, dominando as listas de mais vendidos no Brasil graças à divulgação maciça no horário nobre. Não foi difícil para a maior rede de TV nacional ter a ideia: criar sua própria gravadora e produzir as trilhas. Bastou esperar o contrato de um ano com a Philips acabar e botar a mão na massa. Só havia um problema: a Philips proibiu seus artistas de participar das tais trilhas da recém-criada Som Livre. Como a Philips era então a maior gravadora do país, o selo da Globo teve de se virar. Ressuscitaram a carreira do cantor dos anos 50 Betinho* (aquele de "Neurastênico"), botaram o irmão do Marcos Valle pra cantar, escalaram as atrizes Marília Pêra e Ilka Soares para soltar as vozes, criaram a banda O Som Livre e a Orquestra Som Livre - e funcionou. Logo em O Cafona, resolveram testar nova ideia: versão internacional da trilha. Mas a melhor sacada de todas ainda estava por vir.

***** O Primeiro Amor (Som Livre,  1972)
***** Selva de Pedra (Som Livre, 1972)
***** O Bofe (Som Livre, 1972)
****   O Bem-Amado (Som Livre, 1973)
****   Cavalo de Aço (Som Livre, 1973)
****   Os Ossos do Barão (Som Livre, 1973)
***** Semideus (Som Livre, 1973)
***** Supermanoela (Som Livre, 1974)
****   O Rebu (Som Livre, 1974)

Era tao simples e tao genial que é de espantar que não tenham pensado nisso antes. Em vez de simplesmente compilar interpretaçoes de canções de vários autores, por que não convidar um (ou uma dupla, como veremos) para compor a trilha inteira, toda cantada por diferentes intérpretes? Quem estreou o conceito foi a dupla sambista-jóia Antonio Carlos & Jocafi na novela O Primeiro Amor. Na sequência, seguiram os irmãos Marcos e Paulo Sergio Valle e a trilha de Selva de Pedra, com a clássica "O Beato". Roberto e Erasmo Carlos vieram atrás com a fantástica trilha de O Bofe e depois o arranjador Guto Graça Mello e o letrista Nelson Motta fizeram Cavalo de Aço. A então nova dupla Vinicius e Toquinho se debruçou sobre a trama de O Bem Amado para musicá-la, e Baden Powell e Paulo Cesar Pinheiro fizeram música e letra para o Semideus - hoje, item raro na discografia de Baden. Marcos e Paulo Sergio Valle reprisaram sua participaçao com Os Ossos Do Barão, assim como Antonio Carlos & Jocafi com Supermanoela. Raul Seixas e seu então parceiro em fase pré-literatura-pop-mágica Paulo Coelho criaram as faixas de O Rebu. Era o fim da curta fase de ouro das trilhas, mas havia muito a acontecer.

****   Estúpido Cupido (Som Livre, 1976)
***     Locomotivas (Som Livre, 1976)
***** Te Contei? (Som Livre, 1978)     
****   Dancin' Days (Som Livre, 1978)

Estúpido Cupido foi uma das novelas mais famosas do seu tempo, daquelas lembradas até hoje com nostalgia. O principal motivo disso: o clima retrô generalizado e a trilha sonora, já que a trama se passava nos anos 60 e a cantora Celly Campello era inclusive incorporada à história. Desse conceito nasceu a primeira trilha temática da Globo, toda composta de músicas de dez, quinze anos antes. "Banho de Lua" e "Biquini Amarelo" se tornaram hits nacionais e a trilha quebrou recordes, com 1 milhão de cópias vendidas. No ano seguinte, Locomotivas não era tao temática, mas sua trilha já assimilava as influências da black music que dominavam o Brasil - inclusive com "Maria Fumaça", da Banda Black Rio, como música de abertura. Seguindo o mesmo conceito, a trilha de Te Contei? estava antenada com o momento e funciona até hoje como uma das melhores coletâneas de disco music brasileira de todos os tempos. Dancin' Days, novela que tomava a estética disco para si, tinha efeito similar, mas ainda misturava algumas coisinhas. Tudo tao forte que a trilha bateu novo recorde: 1 milhão e meio de cópias. Depois disso, o único caminho era para baixo.

**   Rei do Gado 2 - Pirilampo e Saracura (Som Livre, 1996)
**   Laços de Família (Som Livre, 2000)
*** Celebridade Samba (Som Livre, 2003)

Tirando fugazes exceções, as novelas não foram mais tao impactantes, as trilhas não mais importantes. Até Rei do Gado, de 1996. A sertaneja novela tinha uma sertaneja trilha - numa época em que o estilo estava ainda forte no país. A trilha foi a primeira a vender 1 milhão e meio de cópias em quase 20 anos. Os personagens Pirilampo (Almir Sater) e Saracura (Sérgio Reis) se tornaram tao populares que participaram do especial de fim de ano de Roberto Carlos na Globo e ganharam uma segunda trilha, em que interpretavam clássicos da música caipira. Era a volta modernizada das trilhas temáticas, que encontraram seu maior expoente em Manoel Carlos e seu perene clichê praias-do-Rio-e-bossa-nova. Laços de Família, de 2000, tinha Astrud Gilberto, Skank e Caetano. A última grande trilha temática aconteceu em 2003, com Celebridade, que tinha o núcleo que frequentava o espaço sambístico Sobradinho, por onde passaram Zeca Pagodinho, Jorge Aragao, Martinho da Vila e Dudu Nobre, todos presentes na versão samba da trilha da novela.

15 FAIXAS ESSENCIAIS

1- Teletema - Regininha (1969)
2- Azymuth- Apolo VI (1969)
3- Shirley Sexy - Marilia Pêra (1971)
4- Lucia Esparadrapo - Betinho (1971)
5- O Beato - Marcos Valle (1972)
6- Porcelana, Vidro e Louça- Osmar Milito, Luna e Suza (1972)
7- Refém da Solidao - Maria Odete (1973)
8- Dona de Casa - Antonio Carlos e Jocafi (1974)
9- Como Vovó Já Dizia - Raul Seixas (1974)
10- Neurastênico - Betinho (1976)
11- Estúpido Cupido - Celly Campello (1976)
12- Maria Fumaça - Banda Black Rio (1976)
13- Black Côco - Painel de Controle (1978)
14- Dancin' Days - Frenéticas (1978)
15- Agora é Moda - Rita Lee (1978)

SAIBA MAIS: http://www.teledramaturgia.com.br/tele/home.asp

(Publicado originalmente na revista Bizz, ediçao 211, março de 2007, coluna "Guia de Compras")

*ERRATA: o Betinho que cantou nas trilhas da Som Livre NÂO É o mesmo Betinho de "Neurastênico". Trata-se de Francisco Roberto Cruz Ramos, cuja história pode ser conferida aqui.

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